terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Conto de Natal




            -Para o Natal já sabes o que quero- O velho respondia sempre da mesma forma à filha. A serra, queria voltar à serra. Assim, cheia da neve de Dezembro devia estar tão bonita, como nas recordações que mantinha, inamovíveis, desde a infância. Mas ela oponha-se.

            -Ó pai, mas porque é  que quer ir lá para o fim do mundo? Com a sua idade, deve é descansar, fique aqui, connosco.

            -Sabes que fico, não te ponhas com essas tuas falinhas de gato pedinte; fico só porque não posso ir sozinho, se não te garanto que ia, hoje ainda- refiava o velho e ia-se embora, desaparecendo no quarto cheirando a mofo e velharias que, aliás, Simone estava sempre a insistir que guardasse pela “boa saúde da menina”. “Boa saúde”. Ele sabia bem que o que ela queria era ver-se livre das suas coisas, que durante toda a vida, e a muito custo, verdade seja dita, recolhera de todos os locais pelos quais andara. Como se Vera precisasse de cuidados destes, era tão bonita, tão saudável, tal e qual a avó, agora desaparecida, quando tinha a sua idade.

            O velho deixava-se estar, de pés sempre gelados, deitado na cama de molas gastas, lendo os seus clássicos- de escritores que ninguém lembrava, não obstante que ele nunca os esquecesse- mas intercalados com capítulos de Crime e Castigo, Contos da montanha ou Viagens na minha terra, pensamentos afloravam da terra que o vira nascer. Do seu verde, do seu pequeno poço, alimentado pelo riacho circundante, do qual tiravam água- agora- pensava- já teriam canalização- do seu matinal frio gélido, das suas casinhas pequenas e brancas. Um quadro era construído na sua mente e ele a tentar lá entrar, ainda que, por força dos intermináveis anos de separação- que ele deixara a terrinha santa antes mesmo do Botas cair- não conseguisse tal coisa, ficando à margem, como um turista, um observador, um corpo estranho.

            Voltava ,então, à sala e pedia de novo à implacável filha:

            -Simone, por favor, é o meu único desejo-no entanto, a filha revestira-se de figura demasiadamente  protectora, não queria que o pai saísse da cidade, ainda se perdia no comboio ou ficava lá, entre as vacas e os montes. Nem entendia a sua súbita vontade de voltar a ver a terra, se há tantos anos não ia lá. Ela própria, já na casa dos trinta,só se recordava de ter visitado a aldeiasita uma vez quando tinha uns quatro anos, mas a experiência correra tão mal que juraram para nunca mais.

            Isto já  para não mencionar o considerável incómodo que tão desnecessária viagem lhe causaria.

            Limitava-se, assim, a fazer que não com a cabeça, num gesto que denotava exaustão e  cansaço, e continuava a passar as camisas de seda.

            O processo repetia-se em ciclos regulares de aproximadamente três horas, até Simone sair para ir buscar Vera, a menina pequenina que passava o tempo no infantário a brincar com legos. Eventualmente, a menina batia à porta do quarto do avô, entrava e perguntava:

              -Ela deixou?- E ele respondia sempre:

            -Não, a tua mãe está impossível.

            Até que um dia, no dia em que Vera terminou o período escolar, chegando  a casa eufórica com a promessa de umas fantásticas férias, perguntou ao avô a questão do costume e ele respondeu:

            -Não,  mas tive uma ideia. Vamos nós os dois. Que te parece?- andara a pensar naquilo muito tempo e parecia a única solução exequível. A rapariga olhou para ele com olhos matreiros, repetindo:

            -Nós os dois. Só nós os dois. De comboio?

            -Sim, de comboio

            -A tua terra é mesmo bonita?

            -É a mais bonita de todas, garanto-to- anunciou o velho de riacho na ideia.

            Assim o decidiram, assim o planearam. Sairiam de casa três dias antes de dia 24, iriam a pé até à estação de Santa Apolónia e tomariam o comboio até Viseu, de onde continuariam nas confortáveis camionetas locais. Tudo somado, demorariam cerca de 5 horas, tempo que para o  velho parecia muito efémero, tendo em conta que não via a terra há mais anos do que aqueles que era capaz de contar. Passariam o Natal na casa de um amigo de longa data do velho, com o qual, às vezes, ainda se correspondia e voltariam- o velho não estava bem certo desta parte, que o seu desejo era morrer no local que o vira nascer, mas logo se veria- dia 27.

            -A mãe não vai ficar zangada?

            -Não te preocupes com isso, Vera. O avô trata- dizia ele,  intermediando a adrenalina e a vontade imensa de partir com o desgosto, provavelmente duradouro até ao fim dos seus dias, que despoletaria na amada filha (e na falecida mulher, caso esta o estivesse a observar). Mas tinha de ir, essa era uma certeza tão forte que nada a abalava e era dela que tudo o resto surgia.

            As malas fizeram-nas leves e subtilmente. Na véspera da partida, prepararam uma trouxa e o velho guardou os bilhetes na algibeira da gabardina.

            Aparentemente, Simone detectara uma certa estranheza, já que era seu novo entretenimento perguntar ao pai se estava tudo bem, se tinha algum problema, se andava a tomar os medicamentos todos e se, porventura, continuava acordado até de madrugada a ler os romances que, segundo ela, o deixavam a funcionar mal. E, pior de tudo, parecia que também perguntava a Vera se sabia alguma coisa acerca do estranho comportamento do avô.

            O sexagenário ,tinha quase 66 anos, (que  número tão perfeito e redondinho) sofrera, desta forma, bastante nos dias que precederam a arriscada viagem pois, se por um lado se achava capaz de manter o segredo , ainda que isso lhe custasse, não estava tão certo quanto à inocente netinha.

            Felizmente, tudo correra pelo melhor e aqui estavam eles, a sair de casa, de sacos às costas e  expectativa nos peitos (tanto no peludo do velho como no mínimo da menina). O termómetro marcava 5 graus, aquele estava a ser um Inverno invulgarmente frio, o velho nem queria imaginar como estaria na serra... Mandou Vera ir buscar o quente impermeável roxo que gerara conflito na noite anterior uma vez que ele queria que ela o levasse  mas a menina se recusava a fazê-lo. Bastava, afinal, ameaçar que sairia sem ela se não o vestisse para que ela o fizesse o mais depressa que as suas pequenas pernas permitissem.

            O velho escrevera um bilhete à filha, dizia assim:

            “Simone:

            Tinha mesmo de ir. Não o compreendes porque és demasiado nova ,igualmente demasiado velha, que é meu entender que as crianças e os velhos são muito parecidos, por isso levei a Vera.

            Prometo que tudo correrá bem, só quero visitar  a terra antes de partir deste local a que gostam de chamar corpo [ “ele sempre foi muito crente nesta coisa do corpo e da alma”, haveria  Simone de pensar quando lesse o recado].Gostaria igualmente  que a menina conhecesse a serra; é muito importante para mim que, pelo menos, uma de vocês  mantenha o carrinho que nutro pelo local. Lá, Simone, quer queiras quer não, estão as nossas origens, naquela serreta mágica, e lá permanecerão.

            A menina volta, garanto-to. Quanto a mim, já não estou tão certo, mas não te apoquentes.

            Duvido muito que me perdoes, ainda que gostasse muito que o fizesses.

            Um beijo do pai a quem chamavas querido e que não te queria magoar.

            António”

            O caminho até à estação foi percorrido a pé, como planeado, da forma leve mas segura com a qual se percorrerm todos os caminhos para o paraíso. O ar gélido da madrugada não  os afectava e que estranho quadro deviam parecer aos poucos transeuntes que passavam: uma menina e um velho de mãos dadas;  ela saltitante e contente, submersa no imenso casaco roxo e no gorro com orelhas de tigre e ele, de não no bolso- a que segurava a criança, entenda-se- sorriso nos lábios e olhar sonhador, feliz da vida.

            O estranho casal chegou à carruagem no tempo previsto e sentou-se confortavelmente nos bancos vazios da primeira classe do primeiro comboio que partia naquele memorável dia. O velho ofereceu um chocolate quente à neta e ficou a observá-la, em silêncio, enquanto fumava um cigarro. Via nela traços da amada Maria José, sempre tão direita, tão selecta e orgulhosa. Lembrava aquele dia em que dançaram no arraial da aldeia e o outro em que colheram maçãs.

            Precedido do habitual som fumarento,  o comboio partiu, rompendo a névoa da manhã submersa. Vera não demorou muito a adormecer, levada pelo cansaço e pela excitação, deixando o velho só, mergulhado em recordações a cada minuto mais próximas.

Sofia Sequeira

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