(Este texto foi inspirado pela frase truncada: “Do lado de cá de todos os montes é
que vida é sempre feia. Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos…” in Marinheiro, Fernando Pessoa)
A compota de
morangos. O cheiro a terra lavada. A brisa leve que transportava as
folhas, os odores e os sons. Tudo é
música. Agora nos meus ouvidos oiço-a
claramente: soa a canário e a infância.
Sentava-me muitas
vezes na entrada da casa, no banco de madeira verde. Comigo, as árvores
passaram de sementes a monstros que tapam o olhar. Assim, primeiro, cingia-me à
terra, a seus habitantes rasteiros e peganhentos que me fascinavam, a eventual
cão ou gato que passasse, à humidade natural do solo e ao gosto dos mais
minerais férreos. Depois, vi a risca azul do rodapé da casa e todas as
plantinhas que nela abundavam, os caracóis, as lagartixas e as osgas. Seguiu-se
a certeza os montes que, a toda a volta, para onde quer que me voltasse,
rodeavam a habitação, tal lápide entre o cemitério. Finalmente, o maravilhoso
mundo dos astros e das estrelas, da escuridão e dos cometas.
Minha mãe sempre pronta.
Sempre com uma tarte no forno- que só podíamos comer depois de resfriada. Usava
um avental creme com um bolso no meio e cheirava a rosas. No meu cabelo fazia
tranças e penteados intermináveis. As mãos eram de trabalhadora camponesa,
robustas mas frágeis, sempre à procura de quem as agarrasse.
Presente sempre,
aceitou bem o dia em que os montes tomaram conta de mim. A febre já me afetava
há semanas, que em breve seriam meses. Era a promessa, o sonho americano da
nossa medida. Todas as esperanças dos jovens se afunilavam na certeza de que no
outro lado das montanhas existia o que não se encontrava do lado de cá. Todos
os anos saíam muitos. Alguns voltavam anos depois e assim se explica a
permanência da comunidade local que, de outra forma se sumiria como um baralho
de cartas em dia de tempestade tenebrosa.
Por isso, quando lhe
disse que partiria, minha mãe sorriu e afirmou esperar tal desde o dia em que
me vira sair de si. Ajudou-me a arrumar a mala, a encontrar e reunir as roupas.
Todos os meus pertences cabiam na mais pequena, verde e preta, herdada de meu
avô que a adquirira na Guiné. Era um dos orgulhos da família. Na última noite,
beijou-me. Mas não foi como o das outras noites, antes mais demorado. Como se
tentasse, com todas as forças, retirar algo de mim, e eu dela, que não pudesse
sair pela boca.
De madrugada, ao
raiar do Sol, naquela mágico momento no qual o céu se tinge de laranja e de
rosa, também ela se levantou para me ver partir. Fez questão em fazer-me as
idiossincráticas tranças e tomámos o pequeno-almoço juntas, silenciosas. Chá,
leite e compota de morangos como ela tão bem fazia. Chá, leite e compota de
morangos. Chá, leite e compota de morangos. Oiço tão bem agora o som das
dentadas, do mastigar, dos líquidos a caírem nas chávenas e a serem
posteriormente sorvidos pelos lábios vermelhos e gelados.
Seguiu-me até à
estrada. Abraçou-me. Foi o último abraço que me deu. Deixou-se a ver-me partir.
Só uma vez olhei para trás, mesmo antes de virar. Via-a, acenei-lhe. Acenou-me
de volta, riu. Sei que mantinha uma frágil personagem; por dentro, nas
entranhas revoltas, já choraria e, em breve, mal me virasse e desaparecesse
para sempre, o choro chegaria ao exterior rompendo a pele, sob a forma de
lágrimas. Não a vi mais, mas nunca esqueci esse dia, como os anteriores.
Ó mãe, se eu
soubesse… Se eu entendesse, mãe, que do lado de cá de todos os montes é que
a vida é sempre feia, não teria partido nunca. Porque agora o lado de lá é
o teu.
Se eu me lembrasse
do caminho eu voltava. Mas não sei, nunca soube, voltar; sei apenas partir. Eu
quero-te tanto e quero tanto estar aí. Quero o som da gravilha nos pés, que é
diferente o som deste lado; quero a hora das gaivotas, que é diferente a hora
de cá; quero o teu cheiro, que é diferente o cheiro das mães de cá.
Mãe, se tu pudesses,
vinhas buscar-me? Saías da tua casinha, do teu mundo e vinhas até cá?
Preparavas a trouxa? Vinhas, mãe? Porque eu quero tanto ir. Mas não sei ir.
Sabes, deste lado o
Sol não nasce da mesma maneira, os pássaros não agem da mesma forma. Este lado
não é bonito. Não gosto de estar aqui, quero voltar para junto de ti e do teu
mel, dos teus doces, dos teus carinhos.
Aí do teu lado, do
lado de lá, para quem aqui está, costumávamos ser felizes, ledos.
Lembras-te da nossa alegria? Eu tenho a certeza desses tempos, consigo
ouvi-los, vê-los, mas não senti-los plenamente e ardentemente como tanto
desejo.
Qual era a música
que me cantavas para adormecer? Era de outro país, não era? Noutro dialeto
talvez. Infantil, crédulo.
Diz-me, mãe, onde
está o meu vestido verde? Que queria levá-lo ao baile com o Victor. Onde está
ele, mãe? Ajudas-me a procura-lo?
Sofia Sequeira