quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O rapaz que não sabia o que era estar farto



 Texto escrito para continuar a frase: “Sob mil sóis escaldantes vivia inundado de alegria e inocência um rapaz”


“Sob mil sóis escaldantes vivia inundado de alegria e inocência um rapaz” com uma característica anormal: tinha uma cabeça muito grande. Por esta razão, cheio de vergonha, resolveu refugiar-se entre duas montanhas, num vale gigante onde tudo era grande, e assim já se sentia bem.
O vale era constituído por plantas verdejantes grandes, por animais extremamente grandes e por todo o tipo de fauna e flora, desde que obedecesse a uma condição: ser grande.
Ao fim de uns tempos o rapaz ficou farto de não ver pessoas; então, voltou a casa onde sua mãe vivia, na cidade. Na cidade, voltou a falar com pessoas, com as que já conhecia e com outras tantas que passou a conhecer. Falou, falou, falou, até que se fartou.
 Chegado a este ponto, a única coisa que o rapaz viu como solução para este problema foi mudar-se para outro sítio, ainda mais longínquo do que o lugar para onde fora anteriormente.
O único problema deste lugar era ter dois mil sóis: dois mil sóis lá brilhavam, dois mil sóis o encandearam, dois mil sóis o mataram.

Lourenço

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Do lado de cá de todos os montes


(Este texto foi inspirado pela frase truncada: “Do lado de cá de todos os montes é que vida é sempre feia. Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos…” in Marinheiro, Fernando Pessoa)

 

A compota de morangos. O cheiro a terra lavada. A brisa leve que transportava as folhas,  os odores e os sons. Tudo é música. Agora  nos meus ouvidos oiço-a claramente: soa a canário e a infância.
 
Sentava-me muitas vezes na entrada da casa, no banco de madeira verde. Comigo, as árvores passaram de sementes a monstros que tapam o olhar. Assim, primeiro, cingia-me à terra, a seus habitantes rasteiros e peganhentos que me fascinavam, a eventual cão ou gato que passasse, à humidade natural do solo e ao gosto dos mais minerais férreos. Depois, vi a risca azul do rodapé da casa e todas as plantinhas que nela abundavam, os caracóis, as lagartixas e as osgas. Seguiu-se a certeza os montes que, a toda a volta, para onde quer que me voltasse, rodeavam a habitação, tal lápide entre o cemitério. Finalmente, o maravilhoso mundo dos astros e das estrelas, da escuridão e dos cometas.
 
Minha mãe sempre pronta. Sempre com uma tarte no forno- que só podíamos comer depois de resfriada. Usava um avental creme com um bolso no meio e cheirava a rosas. No meu cabelo fazia tranças e penteados intermináveis. As mãos eram de trabalhadora camponesa, robustas mas frágeis, sempre à procura de quem as agarrasse.

Presente sempre, aceitou bem o dia em que os montes tomaram conta de mim. A febre já me afetava há semanas, que em breve seriam meses. Era a promessa, o sonho americano da nossa medida. Todas as esperanças dos jovens se afunilavam na certeza de que no outro lado das montanhas existia o que não se encontrava do lado de cá. Todos os anos saíam muitos. Alguns voltavam anos depois e assim se explica a permanência da comunidade local que, de outra forma se sumiria como um baralho de cartas em dia de tempestade tenebrosa.

Por isso, quando lhe disse que partiria, minha mãe sorriu e afirmou esperar tal desde o dia em que me vira sair de si. Ajudou-me a arrumar a mala, a encontrar e reunir as roupas. Todos os meus pertences cabiam na mais pequena, verde e preta, herdada de meu avô que a adquirira na Guiné. Era um dos orgulhos da família. Na última noite, beijou-me. Mas não foi como o das outras noites, antes mais demorado. Como se tentasse, com todas as forças, retirar algo de mim, e eu dela, que não pudesse sair pela boca.

De madrugada, ao raiar do Sol, naquela mágico momento no qual o céu se tinge de laranja e de rosa, também ela se levantou para me ver partir. Fez questão em fazer-me as idiossincráticas tranças e tomámos o pequeno-almoço juntas, silenciosas. Chá, leite e compota de morangos como ela tão bem fazia. Chá, leite e compota de morangos. Chá, leite e compota de morangos. Oiço tão bem agora o som das dentadas, do mastigar, dos líquidos a caírem nas chávenas e a serem posteriormente sorvidos pelos lábios vermelhos e gelados.

Seguiu-me até à estrada. Abraçou-me. Foi o último abraço que me deu. Deixou-se a ver-me partir. Só uma vez olhei para trás, mesmo antes de virar. Via-a, acenei-lhe. Acenou-me de volta, riu. Sei que mantinha uma frágil personagem; por dentro, nas entranhas revoltas, já choraria e, em breve, mal me virasse e desaparecesse para sempre, o choro chegaria ao exterior rompendo a pele, sob a forma de lágrimas. Não a vi mais, mas nunca esqueci esse dia, como os anteriores.

Ó mãe, se eu soubesse… Se eu entendesse, mãe, que do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia, não teria partido nunca. Porque agora o lado de lá é o teu.

Se eu me lembrasse do caminho eu voltava. Mas não sei, nunca soube, voltar; sei apenas partir. Eu quero-te tanto e quero tanto estar aí. Quero o som da gravilha nos pés, que é diferente o som deste lado; quero a hora das gaivotas, que é diferente a hora de cá; quero o teu cheiro, que é diferente o cheiro das mães de cá.

Mãe, se tu pudesses, vinhas buscar-me? Saías da tua casinha, do teu mundo e vinhas até cá? Preparavas a trouxa? Vinhas, mãe? Porque eu quero tanto ir. Mas não sei ir.

Sabes, deste lado o Sol não nasce da mesma maneira, os pássaros não agem da mesma forma. Este lado não é bonito. Não gosto de estar aqui, quero voltar para junto de ti e do teu mel, dos teus doces, dos teus carinhos.

Aí do teu lado, do lado de lá, para quem aqui está, costumávamos ser felizes, ledos. Lembras-te da nossa alegria? Eu tenho a certeza desses tempos, consigo ouvi-los, vê-los, mas não senti-los plenamente e ardentemente como tanto desejo.

Qual era a música que me cantavas para adormecer? Era de outro país, não era? Noutro dialeto talvez. Infantil, crédulo.
 
Diz-me, mãe, onde está o meu vestido verde? Que queria levá-lo ao baile com o Victor. Onde está ele, mãe? Ajudas-me a procura-lo?
 
Sofia Sequeira