quarta-feira, 2 de abril de 2014

A fala das dadás1

(Texto inteiramente construído só com a vogal a)
 
-Sara, salva-a para a alma salgada não sarar. A vara da alga fana-lha. Já!

-Calma!, A Ana safa a alma! Das armas caça a alga má. Matar para a Ana faz salvar.

-Farsa! Vá lá.

-Calma! A casca da Alda dá paz. A arara da bata canta tal.

-A arara ama a cal da já má  casa (a sala caí...). Nada sã...

-Dá tal casar com a safada barata!

-Tal fada má...

1- De Dadaísmo
Sofia Sequeira
Monovocalismo: texto escrito, usando apenas uma vogal.

O Relógio


(Texto construído a partir de um objecto - relógio de bolso antigo).


O relógio pertence a José António; antes, pertenceu a Manuel José e, antes ainda, a Vítor Hugo. Trata-se, portanto, de um desses objectos que passam de mão em mão, ao longo do tempo e das gerações, transportando consigo os segredos e as fragilidades das famílias. Quantas vezes em mãos de um só género… Não é o caso. Ao longo da jornada, por vezes perde-se a essência original, mas neste caso não, porque se pode vê-la bem no centro dos ponteiros – basta abrir a portinhola e retirar o vidro e logo se sente o poder milenar do tempo passageiro.

Vítor Hugo (século XIX, Sol – Século XX, Lua) era um estudioso. Interessavam-lhe todas as áreas do saber, ainda que privilegiasse a Geografia e a Matemática (apesar de dizer que todas amava por igual). Os dias, passava-os a ler e a resumir o que tinha lido; quem o conhecia, dizia dele que nada via além de livros, e assim se explicava o facto de desconhecer por completo que o jardineiro lhe fecundar a mulher atrás da casa, plantando o filho tomado como seu – mas que, a todos os títulos e para se dizer verdade, não considerava, de todo, digno da sua atenção, especialmente quando comparado às grandes obras, que repousavam expectantes na estante.  Talvez esta indiferença tenha sido a causadora da índole boémia e folgada de Manuel José que sempre achou que o pai não o amava.

Às segundas-feiras, Vítor Hugo gostava de ir ao mercado. Era o melhor dia porque já não se levava com a confusão do fim-de-semana, mas havia ainda abundância de víveres e de outros produtos muito mais interessantes, para os quais, para desespero das criadas, mais olhava – como o telescópio que comprara com quase um quarto das poupanças e que assustara tanto Margô, a cozinheira francesa, que a desgraçada jurou nunca mais ali trabalhar e no próprio dia se foi embora.

Assim, foi uma Segunda primaveril, precocemente primaveril, que ainda  cheirava aos sonhos da consoada, que o aristocrata  de bigode farfalhudo e roupa de cerimónia, com a qual andava sempre, adquiriu o já muito falado relógio. O vendedor, de pele escura mas não preta, e turbante na cabeça, vestia todo de branco (algo que pareceu ao burguês um lençol) e por isso o chamou à atenção. Estava sentado no chão, ao lado de um tapete com vários artigos. Ninguém ousava aproximar-se pois bem se via que não era das terras de el-rei, mas claro que a Vítor Hugo nada  excitava mais que a diferença. Ao aproximar-se, um cheiro forte a comida do mar chegou-lhe ao corpo, penetrando na camada última de seda, barreira entre o dentro e o fora. O estranho sujeito nada disse. Admirado, Vítor Hugo decidiu iniciar o diálogo:

- O senhor de onde vem?

-De sítios que não conhece- foi a resposta do estranho esperando cessar contacto.

- Talvez conheça…

- Não, que são longe.

- Digo-lhe: sei o local de muitos “sítios”  (a palavra doía-lhe, que eram nações e não sítios)  mesmo que nunca os tenha visto.

-Como é isso?- perguntou o homem, pela primeira vez interessado e pela primeira vez olhando directamente para o que o interpelava. Vítor Hugo conseguiu perceber que devia estar já na solitária casa dos quarenta.

-Tenho um mundo no escritório- explicou. Referia-se, naturalmente, ao velho globo que herdara do avô,  mas viu o estranho tão fascinado e tão incrédulo, de olhos tão brilhantes, que se sentiu no dever de o esclarecer. Ia dizer “É pequeno, uma miniatura, sabe?” mas não foi capaz, porque antes já o outro lhe dizia:

- Isso parece coisa de bruxo. Se mo mostrar dou-lhe este relógio. Pertencia a meu pai e antes dele a meu avô, está na nossa família há séculos. Foi feito pelas mãos mais fortes que já cresceram na Terra e é o que de mais precioso tenho.

Vítor Hugo ficou tão emocionado que aceitou, mesmo sabendo que a mulher, sempre ocupada no jardim, detestava visitas inesperadas.

- Venha, então - e partiram.

Foi assim que o aristocrata de meia-idade ganhou o marcador do tempo que o havia de acompanhar até ao fim da vida. Era, de facto, muito belo: dourado, daqueles que se prendem no colete com uma corrente, tal como Mr.Foggs tão idiossincraticamente fazia. Ricamente trabalhado, forjado de ouro puro, tinha os mais belos e intrigantes padrões que Vítor Hugo alguma vez vir. A numeração era árabe, característica rara à época. Quando o estranho se foi embora, depois de verem a Pérsia, seu local de nascimento, no globo, o burguês sentiu-se culpado por ter aceite tamanha oferenda em troca de tão pouco. A culpa acompanhá-lo-ia até á morte. Não sabia que o persa gostara tanto da experiência que dedicara o resto da vida a construir pequenos mundos, enriquecendo com o experimentar dos outros e que mandou colocar na sua lápide um agradecimento ao estranho que lhe mostrara o mundo e que o deixara pegar-lhe como se fosse uma criança.

Com a passagem do tempo, Vítor Hugo tornou-se o homem mais sábio que aquelas terras viram. Quando muito velho, já incapacitado na arte da leitura e da escrita, passava os dias aconselhando a população, na esperança de deixar as bases sólidas para um melhoramento vindouro. Como sabedor que se formara, entendia bem que a seguir à morte nada existe; por isso, não buscava conforto nela, antes no que ficaria. Até um pouco nos que ficariam.

Foi nesta altura que, já quase cego, se aproximou do alegado filho Manuel José.  Era, no entanto, já demasiado tarde para lhe corrigir o carácter conhecidamente boémio e até rebelde. Assim, no leito de morte, ao entregar-lhe o relógio, Vítor Hugo disse ao filho:

- Dou-to porque é o objecto mais querido que tive. Lembra-te, ao portá-lo, de quem és, quais as tuas origens e, mais do que tudo, que é a sabedoria, e nada além dela, que leva ao enaltecimento que se quer da vida - Ámen- tocaram os sinos e veio o padre, o velho tinha morrido.

Manuel José, que não seguiu de perto os poucos conselhos do pai, teve um filho muito jovem e quase arruinou a fortuna que há tantos séculos alegrava a família. Nunca usou o relógio e só por força da mãe não o vendeu em situação de aperto. Bêbado irremediável e mulherengo, acabou por ser ostracizado pela sociedade, decidindo, aos cinquenta anos, pôr termo à vida. Quem o viu nesse dia ainda hoje o recorda bem: tomou banho, vestiu a melhor roupa que tinha e penteou o cabelo para trás. Ao passar a vista uma última vez pelos poucos pertences, um objecto lhe chamou à atenção. O que seria senão o relógio que há tantos anos mantinha ao lado da Bíblia? Foi até ele, pegou-lhe, rodou-o na mão; enfim, sentiu-o. Por momentos não soube o que fazer, largou-o e voltou a segurá-lo; pensou até em desistir. Por fim, certo nos intentos, meteu-o no bolso do colete e levou-o até à casa do filho. Deu-o à nora, que o rapaz tinha ido trabalhar e só voltava ao entardecer, apenas com as palavras:

- Dê-o ao José António. É uma prenda. Diga-lhe que pertenceu ao avô.- A rapariga, de tão grande o espanto, não conseguiu dizer nada, nem se despediu do homem antes de este desaparecer no final da rua - nunca via o sogro a não ser  quando lhes tocava o telefone para o irem buscar a algum beco nojento, com um terrível cheiro a álcool que intoxicava quem quer que passasse e no qual o encontravam tão desnorteado que nem os reconhecia.

Manuel José, virando à esquerda, chegou à beira do Tejo e atirou-se. Foi este o seu fim.

Mais tarde nesse dia, José António haveria de ficar muito e inesperadamente feliz pela lembrança do pai que, afinal, parecia, se lembrava da sua existência e nunca largaria o relógio, nem quando, uma semana depois, tendo tempo para lhe agradecer, soube do suicídio do pai.

 

Sofia Sequeira.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O rapaz que não sabia o que era estar farto



 Texto escrito para continuar a frase: “Sob mil sóis escaldantes vivia inundado de alegria e inocência um rapaz”


“Sob mil sóis escaldantes vivia inundado de alegria e inocência um rapaz” com uma característica anormal: tinha uma cabeça muito grande. Por esta razão, cheio de vergonha, resolveu refugiar-se entre duas montanhas, num vale gigante onde tudo era grande, e assim já se sentia bem.
O vale era constituído por plantas verdejantes grandes, por animais extremamente grandes e por todo o tipo de fauna e flora, desde que obedecesse a uma condição: ser grande.
Ao fim de uns tempos o rapaz ficou farto de não ver pessoas; então, voltou a casa onde sua mãe vivia, na cidade. Na cidade, voltou a falar com pessoas, com as que já conhecia e com outras tantas que passou a conhecer. Falou, falou, falou, até que se fartou.
 Chegado a este ponto, a única coisa que o rapaz viu como solução para este problema foi mudar-se para outro sítio, ainda mais longínquo do que o lugar para onde fora anteriormente.
O único problema deste lugar era ter dois mil sóis: dois mil sóis lá brilhavam, dois mil sóis o encandearam, dois mil sóis o mataram.

Lourenço

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Do lado de cá de todos os montes


(Este texto foi inspirado pela frase truncada: “Do lado de cá de todos os montes é que vida é sempre feia. Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos…” in Marinheiro, Fernando Pessoa)

 

A compota de morangos. O cheiro a terra lavada. A brisa leve que transportava as folhas,  os odores e os sons. Tudo é música. Agora  nos meus ouvidos oiço-a claramente: soa a canário e a infância.
 
Sentava-me muitas vezes na entrada da casa, no banco de madeira verde. Comigo, as árvores passaram de sementes a monstros que tapam o olhar. Assim, primeiro, cingia-me à terra, a seus habitantes rasteiros e peganhentos que me fascinavam, a eventual cão ou gato que passasse, à humidade natural do solo e ao gosto dos mais minerais férreos. Depois, vi a risca azul do rodapé da casa e todas as plantinhas que nela abundavam, os caracóis, as lagartixas e as osgas. Seguiu-se a certeza os montes que, a toda a volta, para onde quer que me voltasse, rodeavam a habitação, tal lápide entre o cemitério. Finalmente, o maravilhoso mundo dos astros e das estrelas, da escuridão e dos cometas.
 
Minha mãe sempre pronta. Sempre com uma tarte no forno- que só podíamos comer depois de resfriada. Usava um avental creme com um bolso no meio e cheirava a rosas. No meu cabelo fazia tranças e penteados intermináveis. As mãos eram de trabalhadora camponesa, robustas mas frágeis, sempre à procura de quem as agarrasse.

Presente sempre, aceitou bem o dia em que os montes tomaram conta de mim. A febre já me afetava há semanas, que em breve seriam meses. Era a promessa, o sonho americano da nossa medida. Todas as esperanças dos jovens se afunilavam na certeza de que no outro lado das montanhas existia o que não se encontrava do lado de cá. Todos os anos saíam muitos. Alguns voltavam anos depois e assim se explica a permanência da comunidade local que, de outra forma se sumiria como um baralho de cartas em dia de tempestade tenebrosa.

Por isso, quando lhe disse que partiria, minha mãe sorriu e afirmou esperar tal desde o dia em que me vira sair de si. Ajudou-me a arrumar a mala, a encontrar e reunir as roupas. Todos os meus pertences cabiam na mais pequena, verde e preta, herdada de meu avô que a adquirira na Guiné. Era um dos orgulhos da família. Na última noite, beijou-me. Mas não foi como o das outras noites, antes mais demorado. Como se tentasse, com todas as forças, retirar algo de mim, e eu dela, que não pudesse sair pela boca.

De madrugada, ao raiar do Sol, naquela mágico momento no qual o céu se tinge de laranja e de rosa, também ela se levantou para me ver partir. Fez questão em fazer-me as idiossincráticas tranças e tomámos o pequeno-almoço juntas, silenciosas. Chá, leite e compota de morangos como ela tão bem fazia. Chá, leite e compota de morangos. Chá, leite e compota de morangos. Oiço tão bem agora o som das dentadas, do mastigar, dos líquidos a caírem nas chávenas e a serem posteriormente sorvidos pelos lábios vermelhos e gelados.

Seguiu-me até à estrada. Abraçou-me. Foi o último abraço que me deu. Deixou-se a ver-me partir. Só uma vez olhei para trás, mesmo antes de virar. Via-a, acenei-lhe. Acenou-me de volta, riu. Sei que mantinha uma frágil personagem; por dentro, nas entranhas revoltas, já choraria e, em breve, mal me virasse e desaparecesse para sempre, o choro chegaria ao exterior rompendo a pele, sob a forma de lágrimas. Não a vi mais, mas nunca esqueci esse dia, como os anteriores.

Ó mãe, se eu soubesse… Se eu entendesse, mãe, que do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia, não teria partido nunca. Porque agora o lado de lá é o teu.

Se eu me lembrasse do caminho eu voltava. Mas não sei, nunca soube, voltar; sei apenas partir. Eu quero-te tanto e quero tanto estar aí. Quero o som da gravilha nos pés, que é diferente o som deste lado; quero a hora das gaivotas, que é diferente a hora de cá; quero o teu cheiro, que é diferente o cheiro das mães de cá.

Mãe, se tu pudesses, vinhas buscar-me? Saías da tua casinha, do teu mundo e vinhas até cá? Preparavas a trouxa? Vinhas, mãe? Porque eu quero tanto ir. Mas não sei ir.

Sabes, deste lado o Sol não nasce da mesma maneira, os pássaros não agem da mesma forma. Este lado não é bonito. Não gosto de estar aqui, quero voltar para junto de ti e do teu mel, dos teus doces, dos teus carinhos.

Aí do teu lado, do lado de lá, para quem aqui está, costumávamos ser felizes, ledos. Lembras-te da nossa alegria? Eu tenho a certeza desses tempos, consigo ouvi-los, vê-los, mas não senti-los plenamente e ardentemente como tanto desejo.

Qual era a música que me cantavas para adormecer? Era de outro país, não era? Noutro dialeto talvez. Infantil, crédulo.
 
Diz-me, mãe, onde está o meu vestido verde? Que queria levá-lo ao baile com o Victor. Onde está ele, mãe? Ajudas-me a procura-lo?
 
Sofia Sequeira

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Conto de Natal




            -Para o Natal já sabes o que quero- O velho respondia sempre da mesma forma à filha. A serra, queria voltar à serra. Assim, cheia da neve de Dezembro devia estar tão bonita, como nas recordações que mantinha, inamovíveis, desde a infância. Mas ela oponha-se.

            -Ó pai, mas porque é  que quer ir lá para o fim do mundo? Com a sua idade, deve é descansar, fique aqui, connosco.

            -Sabes que fico, não te ponhas com essas tuas falinhas de gato pedinte; fico só porque não posso ir sozinho, se não te garanto que ia, hoje ainda- refiava o velho e ia-se embora, desaparecendo no quarto cheirando a mofo e velharias que, aliás, Simone estava sempre a insistir que guardasse pela “boa saúde da menina”. “Boa saúde”. Ele sabia bem que o que ela queria era ver-se livre das suas coisas, que durante toda a vida, e a muito custo, verdade seja dita, recolhera de todos os locais pelos quais andara. Como se Vera precisasse de cuidados destes, era tão bonita, tão saudável, tal e qual a avó, agora desaparecida, quando tinha a sua idade.

            O velho deixava-se estar, de pés sempre gelados, deitado na cama de molas gastas, lendo os seus clássicos- de escritores que ninguém lembrava, não obstante que ele nunca os esquecesse- mas intercalados com capítulos de Crime e Castigo, Contos da montanha ou Viagens na minha terra, pensamentos afloravam da terra que o vira nascer. Do seu verde, do seu pequeno poço, alimentado pelo riacho circundante, do qual tiravam água- agora- pensava- já teriam canalização- do seu matinal frio gélido, das suas casinhas pequenas e brancas. Um quadro era construído na sua mente e ele a tentar lá entrar, ainda que, por força dos intermináveis anos de separação- que ele deixara a terrinha santa antes mesmo do Botas cair- não conseguisse tal coisa, ficando à margem, como um turista, um observador, um corpo estranho.

            Voltava ,então, à sala e pedia de novo à implacável filha:

            -Simone, por favor, é o meu único desejo-no entanto, a filha revestira-se de figura demasiadamente  protectora, não queria que o pai saísse da cidade, ainda se perdia no comboio ou ficava lá, entre as vacas e os montes. Nem entendia a sua súbita vontade de voltar a ver a terra, se há tantos anos não ia lá. Ela própria, já na casa dos trinta,só se recordava de ter visitado a aldeiasita uma vez quando tinha uns quatro anos, mas a experiência correra tão mal que juraram para nunca mais.

            Isto já  para não mencionar o considerável incómodo que tão desnecessária viagem lhe causaria.

            Limitava-se, assim, a fazer que não com a cabeça, num gesto que denotava exaustão e  cansaço, e continuava a passar as camisas de seda.

            O processo repetia-se em ciclos regulares de aproximadamente três horas, até Simone sair para ir buscar Vera, a menina pequenina que passava o tempo no infantário a brincar com legos. Eventualmente, a menina batia à porta do quarto do avô, entrava e perguntava:

              -Ela deixou?- E ele respondia sempre:

            -Não, a tua mãe está impossível.

            Até que um dia, no dia em que Vera terminou o período escolar, chegando  a casa eufórica com a promessa de umas fantásticas férias, perguntou ao avô a questão do costume e ele respondeu:

            -Não,  mas tive uma ideia. Vamos nós os dois. Que te parece?- andara a pensar naquilo muito tempo e parecia a única solução exequível. A rapariga olhou para ele com olhos matreiros, repetindo:

            -Nós os dois. Só nós os dois. De comboio?

            -Sim, de comboio

            -A tua terra é mesmo bonita?

            -É a mais bonita de todas, garanto-to- anunciou o velho de riacho na ideia.

            Assim o decidiram, assim o planearam. Sairiam de casa três dias antes de dia 24, iriam a pé até à estação de Santa Apolónia e tomariam o comboio até Viseu, de onde continuariam nas confortáveis camionetas locais. Tudo somado, demorariam cerca de 5 horas, tempo que para o  velho parecia muito efémero, tendo em conta que não via a terra há mais anos do que aqueles que era capaz de contar. Passariam o Natal na casa de um amigo de longa data do velho, com o qual, às vezes, ainda se correspondia e voltariam- o velho não estava bem certo desta parte, que o seu desejo era morrer no local que o vira nascer, mas logo se veria- dia 27.

            -A mãe não vai ficar zangada?

            -Não te preocupes com isso, Vera. O avô trata- dizia ele,  intermediando a adrenalina e a vontade imensa de partir com o desgosto, provavelmente duradouro até ao fim dos seus dias, que despoletaria na amada filha (e na falecida mulher, caso esta o estivesse a observar). Mas tinha de ir, essa era uma certeza tão forte que nada a abalava e era dela que tudo o resto surgia.

            As malas fizeram-nas leves e subtilmente. Na véspera da partida, prepararam uma trouxa e o velho guardou os bilhetes na algibeira da gabardina.

            Aparentemente, Simone detectara uma certa estranheza, já que era seu novo entretenimento perguntar ao pai se estava tudo bem, se tinha algum problema, se andava a tomar os medicamentos todos e se, porventura, continuava acordado até de madrugada a ler os romances que, segundo ela, o deixavam a funcionar mal. E, pior de tudo, parecia que também perguntava a Vera se sabia alguma coisa acerca do estranho comportamento do avô.

            O sexagenário ,tinha quase 66 anos, (que  número tão perfeito e redondinho) sofrera, desta forma, bastante nos dias que precederam a arriscada viagem pois, se por um lado se achava capaz de manter o segredo , ainda que isso lhe custasse, não estava tão certo quanto à inocente netinha.

            Felizmente, tudo correra pelo melhor e aqui estavam eles, a sair de casa, de sacos às costas e  expectativa nos peitos (tanto no peludo do velho como no mínimo da menina). O termómetro marcava 5 graus, aquele estava a ser um Inverno invulgarmente frio, o velho nem queria imaginar como estaria na serra... Mandou Vera ir buscar o quente impermeável roxo que gerara conflito na noite anterior uma vez que ele queria que ela o levasse  mas a menina se recusava a fazê-lo. Bastava, afinal, ameaçar que sairia sem ela se não o vestisse para que ela o fizesse o mais depressa que as suas pequenas pernas permitissem.

            O velho escrevera um bilhete à filha, dizia assim:

            “Simone:

            Tinha mesmo de ir. Não o compreendes porque és demasiado nova ,igualmente demasiado velha, que é meu entender que as crianças e os velhos são muito parecidos, por isso levei a Vera.

            Prometo que tudo correrá bem, só quero visitar  a terra antes de partir deste local a que gostam de chamar corpo [ “ele sempre foi muito crente nesta coisa do corpo e da alma”, haveria  Simone de pensar quando lesse o recado].Gostaria igualmente  que a menina conhecesse a serra; é muito importante para mim que, pelo menos, uma de vocês  mantenha o carrinho que nutro pelo local. Lá, Simone, quer queiras quer não, estão as nossas origens, naquela serreta mágica, e lá permanecerão.

            A menina volta, garanto-to. Quanto a mim, já não estou tão certo, mas não te apoquentes.

            Duvido muito que me perdoes, ainda que gostasse muito que o fizesses.

            Um beijo do pai a quem chamavas querido e que não te queria magoar.

            António”

            O caminho até à estação foi percorrido a pé, como planeado, da forma leve mas segura com a qual se percorrerm todos os caminhos para o paraíso. O ar gélido da madrugada não  os afectava e que estranho quadro deviam parecer aos poucos transeuntes que passavam: uma menina e um velho de mãos dadas;  ela saltitante e contente, submersa no imenso casaco roxo e no gorro com orelhas de tigre e ele, de não no bolso- a que segurava a criança, entenda-se- sorriso nos lábios e olhar sonhador, feliz da vida.

            O estranho casal chegou à carruagem no tempo previsto e sentou-se confortavelmente nos bancos vazios da primeira classe do primeiro comboio que partia naquele memorável dia. O velho ofereceu um chocolate quente à neta e ficou a observá-la, em silêncio, enquanto fumava um cigarro. Via nela traços da amada Maria José, sempre tão direita, tão selecta e orgulhosa. Lembrava aquele dia em que dançaram no arraial da aldeia e o outro em que colheram maçãs.

            Precedido do habitual som fumarento,  o comboio partiu, rompendo a névoa da manhã submersa. Vera não demorou muito a adormecer, levada pelo cansaço e pela excitação, deixando o velho só, mergulhado em recordações a cada minuto mais próximas.

Sofia Sequeira

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Menina

O texto seguinte foi inspirado neste vídeo, após a sua visualização parcial.





A rua é cinzenta. Neva, como não nevava há muito, uma neve pequena, mínima, suave e silenciosa. Os prédios, bem como as ruas, assemelham-se a um quadro, parado, imóvel, imutável.
Mas existe vida. Uma pequena criatura vagueia, tão leve como a neve. Não dá nas vistas. Apresenta um tom de cabelo louro, uma pele branca, uns cativantes olhos verdes. Na cabeça, traz um gorro e, no corpo, um colete vermelho, luvas castanhas e calças pretas. É inocente como uma criança que, aliás, se considera. Vê-se que vive imersa na bondade existente apenas naqueles que ainda não descobriram o mundo e a sua finitude. É ingénua e curiosa (como uma criança saudável). Não sabe muito bem quem é. Nunca o soube.
Segue, energicamente, deslocando-se através de pequenos saltos alegres, até à parede negra onde todos gostam de escrever. As palavras sempre a fascinaram, ainda que não saiba bem como usá-las.  Decide juntar ao estranho e exótico mural aquela que melhor conhecesse: Alma, o seu nome. Pelo menos é assim que a chamam. Depois de o fazer, sente realização. Depressa lhe passa, no entanto, a felicidade.
Como é típico de um ser infantil, ainda infinitamente deslumbrado pelo mundo, existem demasiadas coisas para ver. Tantas que não consegue focar-se numa, nem que seja o místico quadro.
Repara numa loja de brinquedos. É misteriosa e apelativa. Adora brinquedos.  A montra está baça, ela limpa-a. Eis então que se revela o prometedor brinquedo em exposição. É igual a si. Não acredita, é natural… Esfrega os olhos, como todos fazem quando não acreditam no que está à sua frente. Volta a abri-los.  Ainda lá está. É ela, uma fotocópia. Começa a crer que é real. Subitamente, a criatura desaparece.
Alma volta a cair no espanto absoluto. Tenta entrar na loja, mas a porta não abre. Vai-se, frustrada.  Mas um som, leve e sonoroso,  fá-la virar. É a porta, abrira-se inexplicavelmente. A criança entra.
Lá dentro, existem muitos de si. Em prateleiras. Têm o mesmo tamanho, a mesma cor de pele, as mesmas feições. Não se mexem, no entanto, são apenas corpos mortos, aparentemente. Alma não acredita, uma vez mais, no que os seus olhos veem.
Volta a vislumbrar a sua cópia que parecesse esperá-la. Segue até ela. Toca-lhe, sente a sua pele. Cheira-a. A cópia guia-a até um sitio com caixas. Muitas caixas transparentes. Algumas estão cheias de bonecos iguais aos que vira, outras estavam vazias, cheias de nada.
A cópia  tira um alfinete de  uma caixa escondida e espeta-o no braço de Alma que, sem saber explicar porquê, não se afasta. Da sua pele não sai sangue, nem uma gota. Revelação.
As meninas olham-se, Alma de olhos muito abertos. Compreende. A cópia ajuda-a a entrar numa caixa vazia e fecha a tampa. Fecha os olhos e caí num sono profundo do qual não espera acordar.
Era, afinal, uma boneca. Esta é a sua história, a história de Alma.   

Sofia Sequeira

sábado, 16 de novembro de 2013

Artes












Os alunos viram estas pinturas, transformadas em postais e escreveram uma frase para cada uma. Foram selecionadas as mais bonitas, aqui escritas no quadro. 
Estas frases darão origem a textos. O importante é que cada um escreva com base em palavras e expressões que nunca lhe teriam ocorrido, pois pertencem ao universo de uma outra pessoa. Essas palavras e expressões irão adquirir uma outra dimensão. Em função do "escrevedor", claro, mas também em função delas mesmas. Da sua polissemia literária.