-Para o Natal já sabes o que quero- O velho respondia
sempre da mesma forma à filha. A serra, queria voltar à serra. Assim, cheia da
neve de Dezembro devia estar tão bonita, como nas recordações que mantinha,
inamovíveis, desde a infância. Mas ela oponha-se.
-Ó pai, mas porque é
que quer ir lá para o fim do mundo? Com a sua idade, deve é descansar,
fique aqui, connosco.
-Sabes que fico, não te ponhas com essas tuas falinhas de
gato pedinte; fico só porque não posso ir sozinho, se não te garanto que ia,
hoje ainda- refiava o velho e ia-se embora, desaparecendo no quarto cheirando a
mofo e velharias que, aliás, Simone estava sempre a insistir que guardasse pela
“boa saúde da menina”. “Boa saúde”. Ele sabia bem que o que ela queria era
ver-se livre das suas coisas, que durante toda a vida, e a muito custo, verdade
seja dita, recolhera de todos os locais pelos quais andara. Como se Vera
precisasse de cuidados destes, era tão bonita, tão saudável, tal e qual a avó,
agora desaparecida, quando tinha a sua idade.
O velho deixava-se estar, de pés sempre gelados, deitado
na cama de molas gastas, lendo os seus clássicos- de escritores que ninguém
lembrava, não obstante que ele nunca os esquecesse- mas intercalados com
capítulos de Crime e Castigo, Contos da montanha ou Viagens na minha terra, pensamentos
afloravam da terra que o vira nascer. Do seu verde, do seu pequeno poço,
alimentado pelo riacho circundante, do qual tiravam água- agora- pensava- já
teriam canalização- do seu matinal frio gélido, das suas casinhas pequenas e
brancas. Um quadro era construído na sua mente e ele a tentar lá entrar, ainda
que, por força dos intermináveis anos de separação- que ele deixara a terrinha
santa antes mesmo do Botas cair- não conseguisse tal coisa, ficando à margem, como
um turista, um observador, um corpo estranho.
Voltava ,então, à sala e pedia de novo à implacável
filha:
-Simone, por favor, é o meu único desejo-no entanto, a
filha revestira-se de figura demasiadamente
protectora, não queria que o pai saísse da cidade, ainda se perdia no
comboio ou ficava lá, entre as vacas e os montes. Nem entendia a sua súbita
vontade de voltar a ver a terra, se há tantos anos não ia lá. Ela própria, já
na casa dos trinta,só se recordava de ter visitado a aldeiasita uma vez quando
tinha uns quatro anos, mas a experiência correra tão mal que juraram para nunca
mais.
Isto já para não
mencionar o considerável incómodo que tão desnecessária viagem lhe causaria.
Limitava-se, assim, a fazer que não com a cabeça, num
gesto que denotava exaustão e cansaço, e
continuava a passar as camisas de seda.
O processo repetia-se em ciclos regulares de
aproximadamente três horas, até Simone sair para ir buscar Vera, a menina
pequenina que passava o tempo no infantário a brincar com legos. Eventualmente,
a menina batia à porta do quarto do avô, entrava e perguntava:
-Ela deixou?- E ele respondia sempre:
-Não, a tua mãe está impossível.
Até que um dia, no dia em que Vera terminou o período
escolar, chegando a casa eufórica com a
promessa de umas fantásticas férias, perguntou ao avô a questão do costume e
ele respondeu:
-Não, mas tive uma
ideia. Vamos nós os dois. Que te parece?- andara a pensar naquilo muito tempo e
parecia a única solução exequível. A rapariga olhou para ele com olhos matreiros,
repetindo:
-Nós os dois. Só nós os dois. De comboio?
-Sim, de comboio
-A tua terra é mesmo bonita?
-É a mais bonita de todas, garanto-to- anunciou o velho
de riacho na ideia.
Assim o decidiram, assim o planearam. Sairiam de casa
três dias antes de dia 24, iriam a pé até à estação de Santa Apolónia e
tomariam o comboio até Viseu, de onde continuariam nas confortáveis camionetas
locais. Tudo somado, demorariam cerca de 5 horas, tempo que para o velho parecia muito efémero, tendo em conta
que não via a terra há mais anos do que aqueles que era capaz de contar.
Passariam o Natal na casa de um amigo de longa data do velho, com o qual, às
vezes, ainda se correspondia e voltariam- o velho não estava bem certo desta
parte, que o seu desejo era morrer no local que o vira nascer, mas logo se
veria- dia 27.
-A mãe não vai ficar zangada?
-Não te preocupes com isso, Vera. O avô trata- dizia ele,
intermediando a adrenalina e a
vontade imensa de partir com o desgosto, provavelmente duradouro até ao fim dos
seus dias, que despoletaria na amada filha (e na falecida mulher, caso esta o
estivesse a observar). Mas tinha de ir, essa era uma certeza tão forte que nada
a abalava e era dela que tudo o resto surgia.
As malas fizeram-nas leves e subtilmente. Na véspera da
partida, prepararam uma trouxa e o velho guardou os bilhetes na algibeira da
gabardina.
Aparentemente, Simone detectara uma certa estranheza, já
que era seu novo entretenimento perguntar ao pai se estava tudo bem, se tinha
algum problema, se andava a tomar os medicamentos todos e se, porventura,
continuava acordado até de madrugada a ler os romances que, segundo ela, o
deixavam a funcionar mal. E, pior de tudo, parecia que também perguntava a Vera
se sabia alguma coisa acerca do estranho comportamento do avô.
O sexagenário ,tinha quase 66 anos, (que número tão perfeito e redondinho) sofrera,
desta forma, bastante nos dias que precederam a arriscada viagem pois, se por
um lado se achava capaz de manter o segredo , ainda que isso lhe custasse, não
estava tão certo quanto à inocente netinha.
Felizmente, tudo correra pelo melhor e aqui estavam eles,
a sair de casa, de sacos às costas e
expectativa nos peitos (tanto no peludo do velho como no mínimo da
menina). O termómetro marcava 5 graus, aquele estava a ser um Inverno
invulgarmente frio, o velho nem queria imaginar como estaria na serra... Mandou
Vera ir buscar o quente impermeável roxo que gerara conflito na noite anterior
uma vez que ele queria que ela o levasse
mas a menina se recusava a fazê-lo. Bastava, afinal, ameaçar que sairia
sem ela se não o vestisse para que ela o fizesse o mais depressa que as suas
pequenas pernas permitissem.
O velho escrevera um bilhete à filha, dizia assim:
“Simone:
Tinha mesmo de ir. Não o compreendes porque és demasiado
nova ,igualmente demasiado velha, que é meu entender que as crianças e os
velhos são muito parecidos, por isso levei a Vera.
Prometo que tudo correrá bem, só quero visitar a terra antes de partir deste local a que
gostam de chamar corpo [ “ele sempre foi muito crente nesta coisa do corpo e da
alma”, haveria Simone de pensar quando
lesse o recado].Gostaria igualmente que
a menina conhecesse a serra; é muito importante para mim que, pelo menos, uma
de vocês mantenha o carrinho que nutro
pelo local. Lá, Simone, quer queiras quer não, estão as nossas origens, naquela
serreta mágica, e lá permanecerão.
A menina volta, garanto-to. Quanto a mim, já não estou
tão certo, mas não te apoquentes.
Duvido muito que me perdoes, ainda que gostasse muito que
o fizesses.
Um beijo do pai a quem chamavas querido e que não te
queria magoar.
António”
O caminho até à estação foi percorrido a pé, como
planeado, da forma leve mas segura com a qual se percorrerm todos os caminhos
para o paraíso. O ar gélido da madrugada não
os afectava e que estranho quadro deviam parecer aos poucos transeuntes
que passavam: uma menina e um velho de mãos dadas; ela saltitante e contente, submersa no imenso
casaco roxo e no gorro com orelhas de tigre e ele, de não no bolso- a que segurava
a criança, entenda-se- sorriso nos lábios e olhar sonhador, feliz da vida.
O estranho casal chegou à carruagem no tempo previsto e
sentou-se confortavelmente nos bancos vazios da primeira classe do primeiro
comboio que partia naquele memorável dia. O velho ofereceu um chocolate quente
à neta e ficou a observá-la, em silêncio, enquanto fumava um cigarro. Via nela
traços da amada Maria José, sempre tão direita, tão selecta e orgulhosa.
Lembrava aquele dia em que dançaram no arraial da aldeia e o outro em que
colheram maçãs.
Precedido do habitual som fumarento, o comboio partiu, rompendo a névoa da manhã
submersa. Vera não demorou muito a adormecer, levada pelo cansaço e pela
excitação, deixando o velho só, mergulhado em recordações a cada minuto mais próximas.
Sofia Sequeira