quarta-feira, 2 de abril de 2014

A fala das dadás1

(Texto inteiramente construído só com a vogal a)
 
-Sara, salva-a para a alma salgada não sarar. A vara da alga fana-lha. Já!

-Calma!, A Ana safa a alma! Das armas caça a alga má. Matar para a Ana faz salvar.

-Farsa! Vá lá.

-Calma! A casca da Alda dá paz. A arara da bata canta tal.

-A arara ama a cal da já má  casa (a sala caí...). Nada sã...

-Dá tal casar com a safada barata!

-Tal fada má...

1- De Dadaísmo
Sofia Sequeira
Monovocalismo: texto escrito, usando apenas uma vogal.

O Relógio


(Texto construído a partir de um objecto - relógio de bolso antigo).


O relógio pertence a José António; antes, pertenceu a Manuel José e, antes ainda, a Vítor Hugo. Trata-se, portanto, de um desses objectos que passam de mão em mão, ao longo do tempo e das gerações, transportando consigo os segredos e as fragilidades das famílias. Quantas vezes em mãos de um só género… Não é o caso. Ao longo da jornada, por vezes perde-se a essência original, mas neste caso não, porque se pode vê-la bem no centro dos ponteiros – basta abrir a portinhola e retirar o vidro e logo se sente o poder milenar do tempo passageiro.

Vítor Hugo (século XIX, Sol – Século XX, Lua) era um estudioso. Interessavam-lhe todas as áreas do saber, ainda que privilegiasse a Geografia e a Matemática (apesar de dizer que todas amava por igual). Os dias, passava-os a ler e a resumir o que tinha lido; quem o conhecia, dizia dele que nada via além de livros, e assim se explicava o facto de desconhecer por completo que o jardineiro lhe fecundar a mulher atrás da casa, plantando o filho tomado como seu – mas que, a todos os títulos e para se dizer verdade, não considerava, de todo, digno da sua atenção, especialmente quando comparado às grandes obras, que repousavam expectantes na estante.  Talvez esta indiferença tenha sido a causadora da índole boémia e folgada de Manuel José que sempre achou que o pai não o amava.

Às segundas-feiras, Vítor Hugo gostava de ir ao mercado. Era o melhor dia porque já não se levava com a confusão do fim-de-semana, mas havia ainda abundância de víveres e de outros produtos muito mais interessantes, para os quais, para desespero das criadas, mais olhava – como o telescópio que comprara com quase um quarto das poupanças e que assustara tanto Margô, a cozinheira francesa, que a desgraçada jurou nunca mais ali trabalhar e no próprio dia se foi embora.

Assim, foi uma Segunda primaveril, precocemente primaveril, que ainda  cheirava aos sonhos da consoada, que o aristocrata  de bigode farfalhudo e roupa de cerimónia, com a qual andava sempre, adquiriu o já muito falado relógio. O vendedor, de pele escura mas não preta, e turbante na cabeça, vestia todo de branco (algo que pareceu ao burguês um lençol) e por isso o chamou à atenção. Estava sentado no chão, ao lado de um tapete com vários artigos. Ninguém ousava aproximar-se pois bem se via que não era das terras de el-rei, mas claro que a Vítor Hugo nada  excitava mais que a diferença. Ao aproximar-se, um cheiro forte a comida do mar chegou-lhe ao corpo, penetrando na camada última de seda, barreira entre o dentro e o fora. O estranho sujeito nada disse. Admirado, Vítor Hugo decidiu iniciar o diálogo:

- O senhor de onde vem?

-De sítios que não conhece- foi a resposta do estranho esperando cessar contacto.

- Talvez conheça…

- Não, que são longe.

- Digo-lhe: sei o local de muitos “sítios”  (a palavra doía-lhe, que eram nações e não sítios)  mesmo que nunca os tenha visto.

-Como é isso?- perguntou o homem, pela primeira vez interessado e pela primeira vez olhando directamente para o que o interpelava. Vítor Hugo conseguiu perceber que devia estar já na solitária casa dos quarenta.

-Tenho um mundo no escritório- explicou. Referia-se, naturalmente, ao velho globo que herdara do avô,  mas viu o estranho tão fascinado e tão incrédulo, de olhos tão brilhantes, que se sentiu no dever de o esclarecer. Ia dizer “É pequeno, uma miniatura, sabe?” mas não foi capaz, porque antes já o outro lhe dizia:

- Isso parece coisa de bruxo. Se mo mostrar dou-lhe este relógio. Pertencia a meu pai e antes dele a meu avô, está na nossa família há séculos. Foi feito pelas mãos mais fortes que já cresceram na Terra e é o que de mais precioso tenho.

Vítor Hugo ficou tão emocionado que aceitou, mesmo sabendo que a mulher, sempre ocupada no jardim, detestava visitas inesperadas.

- Venha, então - e partiram.

Foi assim que o aristocrata de meia-idade ganhou o marcador do tempo que o havia de acompanhar até ao fim da vida. Era, de facto, muito belo: dourado, daqueles que se prendem no colete com uma corrente, tal como Mr.Foggs tão idiossincraticamente fazia. Ricamente trabalhado, forjado de ouro puro, tinha os mais belos e intrigantes padrões que Vítor Hugo alguma vez vir. A numeração era árabe, característica rara à época. Quando o estranho se foi embora, depois de verem a Pérsia, seu local de nascimento, no globo, o burguês sentiu-se culpado por ter aceite tamanha oferenda em troca de tão pouco. A culpa acompanhá-lo-ia até á morte. Não sabia que o persa gostara tanto da experiência que dedicara o resto da vida a construir pequenos mundos, enriquecendo com o experimentar dos outros e que mandou colocar na sua lápide um agradecimento ao estranho que lhe mostrara o mundo e que o deixara pegar-lhe como se fosse uma criança.

Com a passagem do tempo, Vítor Hugo tornou-se o homem mais sábio que aquelas terras viram. Quando muito velho, já incapacitado na arte da leitura e da escrita, passava os dias aconselhando a população, na esperança de deixar as bases sólidas para um melhoramento vindouro. Como sabedor que se formara, entendia bem que a seguir à morte nada existe; por isso, não buscava conforto nela, antes no que ficaria. Até um pouco nos que ficariam.

Foi nesta altura que, já quase cego, se aproximou do alegado filho Manuel José.  Era, no entanto, já demasiado tarde para lhe corrigir o carácter conhecidamente boémio e até rebelde. Assim, no leito de morte, ao entregar-lhe o relógio, Vítor Hugo disse ao filho:

- Dou-to porque é o objecto mais querido que tive. Lembra-te, ao portá-lo, de quem és, quais as tuas origens e, mais do que tudo, que é a sabedoria, e nada além dela, que leva ao enaltecimento que se quer da vida - Ámen- tocaram os sinos e veio o padre, o velho tinha morrido.

Manuel José, que não seguiu de perto os poucos conselhos do pai, teve um filho muito jovem e quase arruinou a fortuna que há tantos séculos alegrava a família. Nunca usou o relógio e só por força da mãe não o vendeu em situação de aperto. Bêbado irremediável e mulherengo, acabou por ser ostracizado pela sociedade, decidindo, aos cinquenta anos, pôr termo à vida. Quem o viu nesse dia ainda hoje o recorda bem: tomou banho, vestiu a melhor roupa que tinha e penteou o cabelo para trás. Ao passar a vista uma última vez pelos poucos pertences, um objecto lhe chamou à atenção. O que seria senão o relógio que há tantos anos mantinha ao lado da Bíblia? Foi até ele, pegou-lhe, rodou-o na mão; enfim, sentiu-o. Por momentos não soube o que fazer, largou-o e voltou a segurá-lo; pensou até em desistir. Por fim, certo nos intentos, meteu-o no bolso do colete e levou-o até à casa do filho. Deu-o à nora, que o rapaz tinha ido trabalhar e só voltava ao entardecer, apenas com as palavras:

- Dê-o ao José António. É uma prenda. Diga-lhe que pertenceu ao avô.- A rapariga, de tão grande o espanto, não conseguiu dizer nada, nem se despediu do homem antes de este desaparecer no final da rua - nunca via o sogro a não ser  quando lhes tocava o telefone para o irem buscar a algum beco nojento, com um terrível cheiro a álcool que intoxicava quem quer que passasse e no qual o encontravam tão desnorteado que nem os reconhecia.

Manuel José, virando à esquerda, chegou à beira do Tejo e atirou-se. Foi este o seu fim.

Mais tarde nesse dia, José António haveria de ficar muito e inesperadamente feliz pela lembrança do pai que, afinal, parecia, se lembrava da sua existência e nunca largaria o relógio, nem quando, uma semana depois, tendo tempo para lhe agradecer, soube do suicídio do pai.

 

Sofia Sequeira.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O rapaz que não sabia o que era estar farto



 Texto escrito para continuar a frase: “Sob mil sóis escaldantes vivia inundado de alegria e inocência um rapaz”


“Sob mil sóis escaldantes vivia inundado de alegria e inocência um rapaz” com uma característica anormal: tinha uma cabeça muito grande. Por esta razão, cheio de vergonha, resolveu refugiar-se entre duas montanhas, num vale gigante onde tudo era grande, e assim já se sentia bem.
O vale era constituído por plantas verdejantes grandes, por animais extremamente grandes e por todo o tipo de fauna e flora, desde que obedecesse a uma condição: ser grande.
Ao fim de uns tempos o rapaz ficou farto de não ver pessoas; então, voltou a casa onde sua mãe vivia, na cidade. Na cidade, voltou a falar com pessoas, com as que já conhecia e com outras tantas que passou a conhecer. Falou, falou, falou, até que se fartou.
 Chegado a este ponto, a única coisa que o rapaz viu como solução para este problema foi mudar-se para outro sítio, ainda mais longínquo do que o lugar para onde fora anteriormente.
O único problema deste lugar era ter dois mil sóis: dois mil sóis lá brilhavam, dois mil sóis o encandearam, dois mil sóis o mataram.

Lourenço

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Do lado de cá de todos os montes


(Este texto foi inspirado pela frase truncada: “Do lado de cá de todos os montes é que vida é sempre feia. Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos…” in Marinheiro, Fernando Pessoa)

 

A compota de morangos. O cheiro a terra lavada. A brisa leve que transportava as folhas,  os odores e os sons. Tudo é música. Agora  nos meus ouvidos oiço-a claramente: soa a canário e a infância.
 
Sentava-me muitas vezes na entrada da casa, no banco de madeira verde. Comigo, as árvores passaram de sementes a monstros que tapam o olhar. Assim, primeiro, cingia-me à terra, a seus habitantes rasteiros e peganhentos que me fascinavam, a eventual cão ou gato que passasse, à humidade natural do solo e ao gosto dos mais minerais férreos. Depois, vi a risca azul do rodapé da casa e todas as plantinhas que nela abundavam, os caracóis, as lagartixas e as osgas. Seguiu-se a certeza os montes que, a toda a volta, para onde quer que me voltasse, rodeavam a habitação, tal lápide entre o cemitério. Finalmente, o maravilhoso mundo dos astros e das estrelas, da escuridão e dos cometas.
 
Minha mãe sempre pronta. Sempre com uma tarte no forno- que só podíamos comer depois de resfriada. Usava um avental creme com um bolso no meio e cheirava a rosas. No meu cabelo fazia tranças e penteados intermináveis. As mãos eram de trabalhadora camponesa, robustas mas frágeis, sempre à procura de quem as agarrasse.

Presente sempre, aceitou bem o dia em que os montes tomaram conta de mim. A febre já me afetava há semanas, que em breve seriam meses. Era a promessa, o sonho americano da nossa medida. Todas as esperanças dos jovens se afunilavam na certeza de que no outro lado das montanhas existia o que não se encontrava do lado de cá. Todos os anos saíam muitos. Alguns voltavam anos depois e assim se explica a permanência da comunidade local que, de outra forma se sumiria como um baralho de cartas em dia de tempestade tenebrosa.

Por isso, quando lhe disse que partiria, minha mãe sorriu e afirmou esperar tal desde o dia em que me vira sair de si. Ajudou-me a arrumar a mala, a encontrar e reunir as roupas. Todos os meus pertences cabiam na mais pequena, verde e preta, herdada de meu avô que a adquirira na Guiné. Era um dos orgulhos da família. Na última noite, beijou-me. Mas não foi como o das outras noites, antes mais demorado. Como se tentasse, com todas as forças, retirar algo de mim, e eu dela, que não pudesse sair pela boca.

De madrugada, ao raiar do Sol, naquela mágico momento no qual o céu se tinge de laranja e de rosa, também ela se levantou para me ver partir. Fez questão em fazer-me as idiossincráticas tranças e tomámos o pequeno-almoço juntas, silenciosas. Chá, leite e compota de morangos como ela tão bem fazia. Chá, leite e compota de morangos. Chá, leite e compota de morangos. Oiço tão bem agora o som das dentadas, do mastigar, dos líquidos a caírem nas chávenas e a serem posteriormente sorvidos pelos lábios vermelhos e gelados.

Seguiu-me até à estrada. Abraçou-me. Foi o último abraço que me deu. Deixou-se a ver-me partir. Só uma vez olhei para trás, mesmo antes de virar. Via-a, acenei-lhe. Acenou-me de volta, riu. Sei que mantinha uma frágil personagem; por dentro, nas entranhas revoltas, já choraria e, em breve, mal me virasse e desaparecesse para sempre, o choro chegaria ao exterior rompendo a pele, sob a forma de lágrimas. Não a vi mais, mas nunca esqueci esse dia, como os anteriores.

Ó mãe, se eu soubesse… Se eu entendesse, mãe, que do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia, não teria partido nunca. Porque agora o lado de lá é o teu.

Se eu me lembrasse do caminho eu voltava. Mas não sei, nunca soube, voltar; sei apenas partir. Eu quero-te tanto e quero tanto estar aí. Quero o som da gravilha nos pés, que é diferente o som deste lado; quero a hora das gaivotas, que é diferente a hora de cá; quero o teu cheiro, que é diferente o cheiro das mães de cá.

Mãe, se tu pudesses, vinhas buscar-me? Saías da tua casinha, do teu mundo e vinhas até cá? Preparavas a trouxa? Vinhas, mãe? Porque eu quero tanto ir. Mas não sei ir.

Sabes, deste lado o Sol não nasce da mesma maneira, os pássaros não agem da mesma forma. Este lado não é bonito. Não gosto de estar aqui, quero voltar para junto de ti e do teu mel, dos teus doces, dos teus carinhos.

Aí do teu lado, do lado de lá, para quem aqui está, costumávamos ser felizes, ledos. Lembras-te da nossa alegria? Eu tenho a certeza desses tempos, consigo ouvi-los, vê-los, mas não senti-los plenamente e ardentemente como tanto desejo.

Qual era a música que me cantavas para adormecer? Era de outro país, não era? Noutro dialeto talvez. Infantil, crédulo.
 
Diz-me, mãe, onde está o meu vestido verde? Que queria levá-lo ao baile com o Victor. Onde está ele, mãe? Ajudas-me a procura-lo?
 
Sofia Sequeira